Este
livro trata do espaço, da linguagem e da morte; trata do olhar. (FOUCAULT,
2011, VII).
Foucault
inicia sua abordagem sobre a linguagem: “a
partir de que momento, de que modificação semântica ou sintática pode-se
reconhecer que se transformou em discurso racional”? (FOUCAULT, 2011, IX). O que
ocorreu foi o deslocamento de um mundo dos objetos a conhecer; uma mudança
entre o significante e o significado. A mutação do discurso deve ser dirigida à
região em que as “coisas” e as “palavras” ainda estão interligadas (modo de ver
e dizer; visível e invisível; o que se enuncia e o que é silenciado). O olhar
loquaz do médico está centralizado a partir do nível da especialização e da
verbalização fundante sobre o patológico: “Entre
as palavras e as coisas se estabeleceu uma nova aliança fazendo ver e dizer às
vezes, em um discurso realmente tão ‘ingênuo’ que parece se situar em um nível
mais arcaico de racionalidade, como se se tratasse de um retorno a um olhar
finalmente matinal”. (FOUCAULT,
2011, XI).
A forma
racional da medicina parte da percepção, neste momento o olho torna-se fonte de
clareza. Foucault relata que segundo Descartes e Melenbranch: “ver era perceber”. (...) ”sem despojar a
percepção do seu corpo sensível, torna-la transparente para o exercício do
espírito”. Para Foucault a própria medicina moderna fixou sua data de
nascimento, datando nos últimos anos do século XVIII: (...) “No final do século
XVIII, ver consiste em deixar a experiência em sua maior opacidade corpórea; o
solido; o obscuro, a densidade das coisas encerradas em si próprias têm poderes
de verdade que não provem da luz, mas da lentidão do olhar que os percorre,
contorna e, pouco a pouco, os penetra, conferindo-lhes apenas sua própria clareza.”
(...) “Cabia a esta linguagem das coisas
e, sem duvida, apenas a ela, autorizar, a respeito do individuo, um saber que
não fosse simplesmente de tipo histórico ou estético”. (FOUCAULT, 2011, XII).
Até
aqui é possível descrever que a experiência clinica foi abordada como um embate
simplório, sem conceito, entre um olhar e um rosto, espécie de contato anterior
a todo discurso e livre dos embaraços da linguagem, onde dois sujeitos estão em
uma dialética comum, mas não recíproca: “A
medicina dita liberal invoca, (...) os velhos direitos de uma clinica
compreendida como contrato singular e pacto tácito de homem para homem”. (FOUCAULT, 2011, XIII); “A medicina como ciência clínica apareceu
sob condições que definem, com sua possibilidade histórica, o domínio de sua
experiência e a estrutura de sua racionalidade.” (FOUCAULT, 2011, XIV). Foucault aborda uma temática linguística em
relação ao uso da palavra, colocando-a em seu âmago o comentário: “(...) comentar é, por definição, admitir um
excesso do significado sobre o significante, um resto necessário não formulado
do pensamento que a linguagem deixou na sombra, resíduo que é sua própria
essência, impelida para fora de seu segredo.” (FOUCAULT, 2011, XV); Seu desdobramento será no que tange ao
significante e o significado das palavras: “(...) um significante sempre permanece, a que ainda é preciso conceder a
palavra; quanto ao significante, este se apresenta com uma riqueza que, apesar
de nós, nos interrogar sobre o que ela ‘quer dizer’”. (FOUCAULT, 2011, XV).
Todo
fato discursivo deve ser tratado como um acontecimento histórico e dialético
entre o significante e o significado em constituição de seus sistemas
estruturantes como símbolo de resignificação em ordem e métodos: “Falar sobre o pensamento dos outros,
procurar dizer o que eles disseram é, tradicionalmente, fazer uma análise do
significado”. (FOUCAULT, 2011,
XVI).
“O
aparecimento da clínica como fato histórico, deve ser identificado com o
sistema destas reorganizações. Esta nova estrutura se revela, mas certamente
não se esgota na mudança que substituiu a pergunta: o que é que você tem? Por
onde começava no século XVIII, o dialogo entre o médico e o doente, com uma
gramática e seu estilo próprios, por outra que se reconhece no jogo da clínica
e o principio de todo discurso: onde lhe dói”? (...) “A clínica..., deve sua real importância ao fato de ser uma
reorganização em profundidade não só dos conhecimentos médicos, mas da própria
possibilidade de um discurso sobre a doença”. (FOUCAULT, 2011, XVIII).
Ao
final do prefácio Foucault relata que: “este
livro não é escrito por uma medicina contra outra, ou contra a medicina por uma
ausência de medicina”. (FOUCAULT,
2011, XVIII). O fato das coisas ditas pelo homem deve-se denotar seus
pressupostos no principio das sistematizações em quesito há uma abertura a
novos discursos e sua emergência em transformá-los.
Não houve, enfim, uma alteração dos
conceitos, mas a descoberta de uma nova medicina (positiva), ou seja, de tal
modo que a relação entre visível e invisível passou a fazer parte do olhar e da
linguagem dos médicos. A clínica, que surge com a medicina moderna, passa a ser
a nova experiência do médico com o perceptível e o enunciável, entre a doença e
o organismo, entre a linguagem e a patologia. Aparece no campo do saber, uma
reorganização da doença. A medicina do século XX, desenvolvida a partir da anátomoclínica, um tanto mais
especializada. Foucault enfatiza, pela importância de sua ruptura, nas suas
análises da clínica, que objetivou delimitar o espaço de desvelamento da doença
em concomitância com a localização do mal no corpo. O olhar médico,
antigamente, não se dirigia diretamente ao corpo, ao visível, mas aos
intervalos de natureza, às lacunas, e às distâncias entre os signos, à doença: “o espaço do corpo e o espaço da doença têm
liberdade de se deslocar um com relação ao outro”. (FOUCAULT,
2011, p.9).
A doença, com o olhar terciário, ganha uma
dimensão social, passando agora a ser o centro de estudos e de atuações
políticas para controle. O surgimento eminentemente terapêutico, o hospital era essencialmente
uma instituição de assistência aos pobres, uma “institucionalização da
miséria”, uma forma de impedir que existissem focos de desordem econômico e
social; especialmente, de separação e exclusão social, pois o pobre portador de
doença seria ainda mais perigoso, estigmatizando-o, portanto, na sua condição
de miséria: “Terciaria não
significa que se trate de uma estrutura derivada e menos essencial do que as
precedentes; ela implica um sistema de opções que diz respeito à maneira como
um grupo, para se manter e se proteger, pratica exclusões, estabelece as formas
de assistência, reage ao medo da morte, recalca ou alivia a miséria, intervém,
reage as doenças ou as abandona a seu curso natural. (FOUCAULT, 2011, p.16). Anteriormente
as civilizações adoeciam menos, mas com o advento da burguesia, as doenças se
diversificaram; a doença que era anteriormente tratada na residência, em seu lugar natural, agora sofrerá uma
intervenção, passando a ser tratada nos hospitais, sendo o mesmo uma espécie de
estrutura artificial: “O hospital, como a
civilização, é um lugar artificial em que a doença, transplantada, corre o
risco de perder seu aspecto essencial”.” (...) Essa solidão povoada e esse
desespero perturbam, com as sadias reações do organismo, o curso natural da
doença”. “(...) O lugar natural da doença é o lugar natural da vida – a
família: doçura dos cuidados espontâneos, testemunho do afeto, desejo comum da
cura”. (FOUCAULT,
2011, p.17-18).
O hospital existia há tempos, porém a
medicina como ciência não estivesse presente, era uma prática não hospitalar, e
se destinava não como meio de cura. Mas antes de se operar essa mudança no
olhar médico, e, sem dúvida da medicina e das instituições, os hospitais
representavam, verdadeiros lugares de mortes coletivas. Resumia-se num lugar de
transição entre a vida e a morte, de separação entre a população e os
indivíduos perigosos à saúde geral. Os hospitais, sobretudo o Hospital Geral,
até o século XVIII, como lugares de internamento, onde se misturavam loucos,
doentes, devassos, prostitutas, como forma de exclusão, assistência e
transformação espiritual. Os hospitais tinham, portanto, fundamental relevância
para a disposição política do Estado, pois se tornavam indispensáveis à
estrutura social, como forma de proteção: “O
hospital, que em sua forma mais geral só traz os estigmas da miséria, aparece
no nível local como indispensável medida de proteção. Proteção das pessoas
sadias contra a doença; proteção dos doentes contra as práticas das pessoas
ignorantes.” (FOUCAULT, 2011,
p.44-45). A experiência de vigilância hospitalar, no interior da instituição esta
a serviço de registrar as constâncias, as generalidades e os elementos
particulares das doenças. Na formação do médico, se restringia a uma simples leitura dos poucos
livros e de seguir os modelos padrões.
Entra-se aqui o momento da “crise” ou do
“surto” era de suma importância, pois era somente ali que o médico interferia
sobre o doente e a doença. Ficavam, separados os médicos, hospital e medicina,
e um dos grandes fatores para a transformação dos hospitais como assistência
para os hospitais terapêuticos, não foi simplesmente a busca de uma melhora da
atuação dos hospitais, mas, sobretudo, a anulação dos efeitos negativos e
nocivos ao desenvolvimento de novas patologias: “Será
preciso conceber uma medicina suficientemente ligada ao Estado para que, de
comum acordo com ele, fosse capaz de praticar uma política constante, geral,
mas diferenciada de assistência; a medicina torna-se tarefa nacional”. (...) “A
boa medicina deverá receber do Estado testemunho de validade e proteção legal;
a ele cabe ‘estabelecer a existência de uma verdadeira arte de curar’”. (FOUCAULT,
2011, p.20-21).
Com a tecnologia política “disciplina”, os hospitais são deslocados
para a periferia dos centros urbanos a fim de ofuscar da população sua real
situação. A medicina presente nos hospitais, não é a partir de um cuidador
religioso, pois o médico passa a ser a figura principal do hospital. Os médicos
passam a acompanhar a vida dos doentes, antes destinadas aos abastados, quando iam
pessoalmente às suas casas. Ganham um estatuto político: “A primeira tarefa do medico é, portanto política: a luta contra a
doença deve começar por uma guerra contra os maus governos; o homem só será total
e definitivamente curado se for primeiramente liberto”. (FOUCAULT, 2011, p.35). Surgem junto com
os médicos, em virtude de uma alteração na medicina, uma nova hierarquia nos
hospitais, compostas por enfermeiros, alunos, assistentes, etc., bem como uma
nova visão dos doentes, que passam a ser identificados por pulseiras, formam-se
bancos de dados e registros, transformando o hospital, não em simples terapia,
mas, sobretudo, em cadastro documental, de acúmulo de saber e informação. Nesse
contexto, o saber médico sai dos artigos e grandes tratados para fazer parte do
dia-a-dia do hospital, e o ensino médico deve passar obrigatoriamente pelas
práticas hospitalares, surgindo então a “clínica”, como espaço de organização
do hospital e lugar de formação e transmissão de saber: “A medicina não deve mais ser apenas o corpus de técnicas da cura e do
saber que elas requerem; envolverá, também, um conhecimento do homem saudável,
isto é, ao mesmo tempo uma experiência do homem não doente e uma definição do
homem modelo”. (FOUCAULT, 2011,
p.37).
A medicina, agora no hospital, de forma
singular analisa o doente e as suas doenças; os médicos e estudantes passam a
observa-los, levando o ensino dos bancos escolares ao dia-a-dia hospitalar: “A clinica compreende duas partes: ‘no leito
de cada doente o professor deter-se-á o tempo necessário para interrogá-lo de
modo satisfatório, para examiná-lo convenientemente; fará dos alunos observarem
os signos diagnosticados e os sintomas importantes da doença’; em seguida, o
professor retomará no anfiteatro a história geral das doenças observadas nas
salas do hospital: indicará as causas ‘conhecidas, prováveis e ocultas’,
enunciará o prognostico e dará as indicações ‘vitais’, ‘curativas’ ou
‘paliativas’ (FOUCAULT, 2011,
p.77). A clínica estabelece um novo código de saber, não sendo mais um mero
olhar de um observador, mas o de um médico apoiado e justificado pela
instituição, que passa a ter poder de decisão e intervenção, conjugando um
domínio hospitalar, da prática, e um domínio pedagógico, do conhecimento: “(...) com relação a seu objeto, esta não
deve, com efeito, ter lacunas; e não deve permitir desvio algum na linguagem em
que ela o transcreve: “O rigor descritivo será a resultante de uma precisão no
enunciado e de uma regularidade na denominação.” (FOUCAULT,
2011, p.125). Um olhar que escuta e um olhar que fala um novo equilíbrio entre
a palavra e o fantástico: “Com relação ao
ser individual e concreto, a doença nada mais é do que um nome; em relação aos
elementos isolados de que está constituída, tem a arquitetura rigorosa de uma
designação verbal.” (FOUCAULT,
2011, p.131).
A medicina moderna construiu a vida, pela
primeira vez, como um objeto. A clínica
moderna construiu a vida colocando-a sobre a mesa de dissecção, sob o signo do
corpo inanimado que é analisado, do cadáver: “(...) A experiência da anatomoclínica...
aquela em que se articulam as formas reconhecíveis da história patológica e os
elementos visíveis que aparecem quando ela acaba... A abertura dos cadáveres é
o meio de adquirir esse conhecimento; mas para que ela adquira uma utilidade
direta... é preciso acrescentar-lhe a observação dos sintomas ou das alterações
de funções, que coincidem com cada espécie de alterações de órgãos”. (FOUCAULT, 2011, p.149). Já a medicina construiu o objeto que é a vida
a partir de seu contrário, da morte: “O
olhar medico gira sobre si mesmo e pede à morte contas da vida e da doença; à
sua imobilidade definitiva pede contas de seus tempos e de seus movimentos...
Mas Bichat fez mais do que libertar a medicina do medo da morte; ele integrou a
morte em um conjunto técnico e conceitual em que ela adquiriu suas
características especificas e seu valor fundamental de experiência... Abram
alguns cadáveres: logo verão desaparecer a obscuridade que apenas a observação
não pudera dissipar. A noite viva se dissipa na claridade da morte”: (FOUCAULT, 2011, p.162). Foucault
explica que é sob a luz da morte que nós podemos adentrar na obscuridade da
vida. É graças ao esclarecimento que nos dar o cadáver, que podemos estudar
cientificamente, que podemos enfim, entender o mistério e a obscuridade do
corpo com a vida. A experiência da vida é obscura, mas o conhecimento do
cadáver é claro.
No viés da patologia, perpassa por uma nova
epistemologia da doença, uma nova análise do visível e do invisível, uma
importante disposição do saber. “A estrutura perspectiva clínica, e toda a
medicina que dela deriva, é a da invisível visibilidade. A verdade que, por
direito de natureza, é feita para o olho, lhe é arrebatada, mas logo
sub-repticiamente revelada por aquilo que procura esquivá-lo”. (FOUCAULT,
2011, p.183). Para Foucault acabou o tempo da medicina das doenças e começa
agora uma nova medicina, há das reações patológicas: “O espaço da doença é, sem resíduo nem deslizamento, o próprio espaço do
organismo. Perceber o mórbido é uma determinada maneira de perceber o corpo”. (FOUCAULT, 2011, p. 212).
A grande revolução da medicina para Foucault
é datada a partir do século XIX com Broussais, delimitando assim as estruturas médicas: “A revolução médica de Broussais lança os fundamentos em 1816 é,
incontestavelmente, a mais notável que a medicina sofreu nos tempos modernos”.
(FOUCAULT, 2011, p.214).
Anterior ao nascimento da clínica a vida
estava como objeto do poder. Foucault relata que a visão médica mudou no inicio
do século XIX, quando surge a medicina moderna, e esta, não consiste apenas em
uma mudança de visão sobre a vida, mas que foi a primeira que considerou a vida
como um objeto. Foi o primeiro tipo de saber que tratou a vida como um objeto,
ou seja, não tratou a vida como um princípio metafísico, e tampouco a tratou
como uma essência do homem, mas que a tratou como um objeto, pesquisando seus
mecanismos, dissecando-a para transformá-la em um objeto de saber-poder. Na
constituição cientifica da vida, procurava-se a alma no corpo, em seguida, até
então, procurava-se outra coisa, ou seja, um simples mecanismo que trabalha
dentro de um organismo. “A doença se
desprende da metafísica, do mal com quem, há séculos, estava aparentada, e
encontra na visibilidade da morte a forma plena em que seu conteúdo aparece em
termos positivos. Pensada com relação à natureza, a doença era negativo
indeterminável cujas causas, formas e manifestações só se ofereciam de viés e
sobre um fundo sempre recuado; percebida com relação à morte, a doença se torna
exaustivamente legível, aberta sem resíduos à dissecção soberana da linguagem e
do olhar. Foi quando a morte se integrou epistemologicamente à experiência
medica que a doença pôde se desprender da contranatureza e tomar corpo no corpo
vivo dos indivíduos”. (FOUCAULT,
2011, p.216-7).
Da Desrazão nasceu a Psicologia, da morte
nasceu a Medicina; a finitude e a infinitude: “(...) a importância da medicina para a constituição das ciências do
homem: importância que não é apenas metodológica, na medida em que ela diz
respeito ao ser humano como objeto de saber positivo. A possibilidade de o
individuo ser ao mesmo tempo sujeito e objeto de seu próprio conhecimento
implica que se inverta no saber o jogo da finitude”. (FOUCAULT, 2011, p.217). E quanto a Clínica medica: “A
formação da
medicina clínica é apenas uma das mais visíveis testemunhas dessas mudanças nas
disposições fundamentais do saber”. (FOUCAULT,
2011, p.219).
Referência
FOUCAULT. M. O Nascimento da Clínica, Ed.
Forense Universitária, 7ª edição, 2011, 4ª reimpressão, 2015.